Gisela Eichbaum: Pinturas e desenhos


Alberto Beuttenmüller

[...] sua passagem para o abstracionismo lírico; aliás, o mesmo trajeto do expressionismo alemão, que trocou a chamada Escola de Dresden (figurativa) pela Escola de München (abstrata). Ou, se preferirem, o caminho de Lasar Segall para Kandinsky. Na arte abstrata, Gisela Eichbaum pôde desenvolver suas tendências musicais, realizando partituras-imagens, compondo a harmonia de sons com cores, o ritmo, dado pela pincelada expressionista, a melodia construtiva do ser. A matéria – nesta e xposição Gisela apresenta trabalhos de gouache, uma das tintas mais populares, à base de água, a partir da Idade Média. O resultado visual do gouache se assemelha à têmpera, antes de vernizes protetores. Ao mesmo tempo, há algo brilhante quando envernizado, principalmente com verniz de cera e terebintina, que impermeabilizam o gouache da ação da umidade. Apesar de grafarmos em francês, gouache vem do italiano guazzo de aguazzo, ou seja, pintar com água. Sua composição é simples: 50% de goma-arábica como aglutinante, pigmento em pó (óxido de zinco, por exemplo) e 5% de mel de abelhas. Com essa fórmula simples, Gisela faz milagres. Suas composições lembram muito a obra de Bach, pois são “fugas” musicais, em que as harmonias são claras, líricas no uso da cor, mas dramáticas em sua construção tonal. Essa música interior dá a precisa dimensão da obra [...].
Visão, São Paulo (SP), 19/3/1986

Alberto Teixeira

Evento paralelo da 1° Quadrienal Internacional de Aquarela FASM 2003, esta mostra tem como objetivo lembrar e homenagear a obra da desenhista e pintora Gisela Eichbaum, autora de admiráveis aguadas de guache, técnica que cultivou com maestria ao longo de toda a sua vida [...]. Estas obras são parte de um dos livros que organizou de suas mais pequenas pinturas, associando-se à ideia do livro como meio ancestral de comunicação humana, no seu caso comunicação sem palavras e sem cores. Dois desses livros foram publicados. Um deles tinha o título Canções sem palavras, que fazia pensar na relação existente entre pintura e música e entre pintura e poesia, a primeira que era também uma das suas devoções e a segunda de que estava permeada toda a sua obra [...]. As outras obras da exposição, não tão pequenas como as do livro, são, como elas, um desdobrar do seu discurso lírico, expresso numa imagística de grande beleza, originalidade e força comunicativa. Uma das notas mais características dessa imagística, da sua pintura e do seu desenho, que está sempre mesclado na sua pintura, é a poética da luz, uma luz própria e inconfundível, construída com cromatismos e traçados sutis, em efeitos meridianos e noturnais, mas predominantemente de média luz e crepusculares, me paisagens sonhadas ou lembradas, simbólicas e evocativas de situações e vivências múltiplas, ou em abstrações que são como música de singular harmonia. O impulso expressionista, que desde o princípio a norteou, cresceu, amadureceu e a guindou a um tão elevado patamar de realização [...].
Espaço Cultural Banco Central do Brasil, São Paulo (SP), 2003

Alvaro Machado

A música silenciosa e o ideal abstrato
É notável a recorrência da aplicação de conceitos da área musical em comentários sobre a arte de Gisela Eichbaum. Do mais especializado analista ao crítico bissexto, ao abordar sua obra a maioria dos observadores teceu relações entre trabalho plástico, de um lado, e partituras, sons e melodias de outro. Como se a produção madura de Gisela, no veio da chamada “abstração lírica”, culminasse em uma música nova, contemporân ea, liberta da materialidade e desfrutável sobretudo pelos espíritos mais desprendidos. Ao comentar as criações da artista a partir dos anos 1950, o físico e crítico de arte Mário Schenberg também decidiu indicar, na obra de Gisela, laços com áreas musicais. Em sua crítica para uma individual da artista montada em 1966, em São Paulo (e reproduzida na fortuna crítica deste livro), o intelectual referiu-se, precisamente, a certa “música silenciosa”. Sob o viés filosófico, é inteiramente pertinente, pois aproxima essa produção plástica sugestiva de uma “música silenciosa” do ápice do pensamento abstrato: desde os gregos clássicos, a música é situada no topo das expressões da inteligência como a arte mais abstrata e sublime, acima até mesmo da filosofia. Em Eichbaum amplia-se, portanto, o paradoxo de uma música silenciosa, como definiu Schenberg. Quiçá a celestial “música das esferas”, que os pitagóricos afirmavam ser possível “ouvir” no âmbito do puro pensamento. E ainda que saibamos que a pintura abstrata é fruto, a partir do século 20, de uma progressiva pulverização de percepções da realidade – ao mesmo tempo em que a física revelava seus novos conhecimentos de partículas –, caso algum ateniense contemporâneo de Sócrates a tivesse cultivado, poderia ser posicionada sem erro em patamar vizinho à música. Embora presente de maneira sutil e ao mesmo tempo contínua nas criações da fase abstrata de Gisela Eichbaum, essa qualidade musical puramente visual nos remete, por outro lado, à “voz do silêncio”, conceito que integra o corpo de definições de estados do ser nos upanixades indianos, escrituras filosóficas entre as mais antigas que se tem notícia, que buscavam facilitar o entendimento da natureza do universo segundo os Vedas – as escrituras sagradas do hinduísmo, datadas de c. 1.500 a.C. A expressão “a voz do silêncio” empresta, justamente, título a um livro da mística russa Helena Blavatsky (1831-1891), traduzido para o português por Fernando Pessoa, o poeta criador do antimetafísico pastor Alberto Caieiro1. Para avançar um passo nos conceitos dessa trimilenar tradição oriental de sabedoria, reproduzam-se algumas linhas da obra de Blavatsky, aliás ela também musicista e cultora de Johann Sebastian Bach: “Aquele que, na busca da perfeição interior, quiser ouvir a voz de Nada [ou “a voz do silêncio”], o som sem som, e compreendê-la, terá de aprender a natureza do dharana”. Na tradução de Pessoa para o livro da teosofista, a noção de dharana é explicada como “concentração intensa e perfeita do espírito sobre qualquer objeto interior, acompanhada da abstração completa de tudo quanto pertença ao universo exterior, ou mundo dos sentidos”. Ainda que bastante estrangeiro à nossa apreensão da realidade, nos servimos aqui do conceito hindu, objetivo último no caminho do perfeito iogue, para sublinhar o fato de que, ainda que nos amparemos em descrições musicais e aventemos equivalências ao universo das formas – sejam acordes ou clusters de notas musicais ou arquiteturas diluídas –, as obras da artista tradicionalmente descritas como “líricas” situam-se, na verdade, na senda da mais rigorosa abstração, na qual a artista passou a utilizar motivos formais e cromáticos sem correspondência com quaisquer objetos sensíveis. Como na técnica de dharana, que se serve de um padrão formal, ou de um yantra – espécie de mantra visual simplificado, ponto focal para a meditação –, com o objetivo de elevação da consciência à abstração perfeita. De formação europeia racionalista, Eichbaum não se aprofundou em culturas exóticas. Porém, no exercício de um pensamento autenticamente abstrato, seus graduais sinfônicos, alfabetos-idiomas plásticos com múltiplas indicações de extensões e alturas sonoras, podem perfeitamente conduzir o observador menos apressado ao exercício da “concentração intensa”, acima de objetos e exterioridades. Sobretudo para as fases em que enveredou, em várias medidas, pela abstração, como em suas aquarelas pós-1970 – legado impressionante em número, a perfazer verdadeira cosmologia –, pede-se, portanto, o vagar na contemplação, como no tempo dilatado característico do Oriente. E quanto mais tempo empregamos a interiorizar e fixar na memória os padrões desses testemunhos não lineares, de coloraturas sutis como luminescências boreais, mais efetivamente somos conduzidos à experiência de uma reordenação interior. A mera rememoração da composição poderá nos situar, então, em um território de meditação não verbal. Se é fato que se trata de qualidade partilhada por toda obra de arte verdadeira, por outro lado também é admirável a força dessa particular propriedade nos trabalhos da artista. De volta ao paralelo com o universo musical, também existem dados biográficos a alicerçar tais observações. No exame da linha do tempo, devemos tomar, como ponto de partida, a tragédia da “crise derivada das inquietações que seguiria a Primeira Grande Guerra, provocadora dos encontros, desencontros e polêmicas dos numerosos modos que participaram da reação ao impressionismo” – esta “pintura em palavras” do professor Pietro Maria Bardi, o criador do Museu de Arte de São Paulo (Masp), foi produzida para a apresentação da retrospectiva de 40 anos da artista, no próprio Masp, em 1983. Assim, na crise política e social europeia que antecipava o surgimento do nazismo, determinante do exílio de centenas de núcleos familiares para o continente sul-americano, chegou a São Paulo, em 1935, um casal de cultura e talento incomuns, os pianistas Hans Bruch e Lene Weiller-Bruch, os pais de Gisela Eichbaum. Aqui, participaram do corpo docente de escolas de música conceituadas, como a Pro-Arte. Igualmente com privilegiada formação pianística, a artista plástica também chegou a lecionar. A música erudita foi vivenciada, portanto, com intensidade durante toda a trajetória de Gisela, desde a primeira infância. Já em 1986, a artista promoveria uma edição de livro com imagens de suas obras, intitulada Canções sem palavras, como na encantadora música de Felix Mendelssohn Bartholdy. Por outro lado, caso se queira insistir na representação figurativa como âncora de interpretação plástica, o tema do êxodo experimentado pelos pais da artista também estaria contemplado de maneira especial em sua obra, na representação contínua de cidades idealizadas – sem correspondente factual –, a princípio de maneira inequívoca e depois na evanescência da abstração. Como assinalou Geraldo Ferraz por ocasião da citada retrospectiva no Masp, quando, segundo ele, Eichbaum se encontrava “numa plenitude de seus talentos como pintora”. Para esse crítico, nas obras desse período, de acento abstrato, Gisela nos sugeria, entre outras coisas, “cidades e naturezas mortas, as estruturas de que se armam os objetos [...], a surda evocação de certas horas crepusculares [...], pairando entre o sonho e o absurdo cotidiano, com a intermediária função do cenário que a contemplação sugere”. Também o organizador do presente livro, o curador e pesquisador Antonio Carlos Suster Abdalla, reservou o título A cidade eleita a uma seção inteira de reproduções de trabalhos. Cidades condensadas em suas estruturas e indicativas de espaço de perfeição, sugestivas mais de sua alma do que de sua materialidade, a sublimar, por exemplo, as metrópoles alemãs destruídas na Grande Guerra e das quais partiram os progenitores da artista, ou ainda as cidades novas do Brasil às quais os mesmos chegaram, e que apresentariam dificuldades já de outra ordem, de adaptação cultural e reconstrução de identidades. Imagens utópicas de um locus ideal, pleno de cintilâncias musicais, elevado por cores crepusculares acima da realidade comezinha e cuja arquitetura sublime é capaz de produzir música silenciosa, como a das órbitas estelares. Tema de possibilidades de estudo fascinantes e apenas pincelado aqui, porém não o único, e talvez nem o principal, numa aventura plástica de mais de cinquenta anos, a exigir, ainda, a atenção de todo o saber especializado.
1. BLAVATSKY, Helena Petrovna. A voz do silêncio. São Paulo, Editora Pensamento, 2ª edição, 2011. A tradução de Fernando Pessoa é datada de 1916, em volume de Livraria Clássica Editora, Lisboa.

Alvaro Machado exerce a crítica de artes visuais desde os anos 1990, quando foi editor-adjunto dos cadernos “Ilustrada” (Folha de S.Paulo) e “Caderno 2” (O Estado de S.Paulo). É colaborador das revistas Bravo!, CartaCapital e Revista da Cultura, dentre outras. Traduziu, editou, assinou estudo introdutório e notas para a reconstituição do clássico da literatura persa A linguagem dos pássaros, de Attar (1987). Nos anos 2000 foi responsável pela organização e coordenação de livros em cinema, fotografia, literatura e artes plásticas, dentre eles Abbas Kiarostami, Thomaz Farkas – Notas de viagem, Claudia Andujar – A vulnerabilidade do ser, Aleksandr Sokúrov e Manoel de Oliveira, todos editados por Cosac Naify. Editor-responsável da Opera Prima (São Paulo), editora na qual assinou a introdução e as notas da reedição histórica de Orgia – Os diários de Tulio Carella, Recife 1960 (2011).

Antonio Carlos Suster Abdalla

Absoluta coerência
Como pesquisador e curador, estou há mais de dez anos muito próximo dos desenhos e pinturas de Gisela Eichbaum. Isso tem representado uma descoberta contínua, que consolida a certeza de conviver com a obra de uma artista dedicada integralmente ao seu ofício. Gisela buscou e alcançou absoluta coerência em seus mais de cinquenta anos de trajetória artística. O início figurativo de sua empreitada carregava certa dose de expressionismo, naquele momento corrente importantíssima na sua Alemanha natal. Marcando em definitivo sua história como artista, tal influência foi compartilhada no Brasil com artistas como Lasar Segall, Karl Plattner e, de maneira particular, Yolanda Mohalyi. Nos anos 1940-1950 Gisela e Yolanda, que tinham afinidades estéticas, aproximaram-se, tornando-se grandes amigas. Yolanda mantinha em seu ateliê paulistano grande movimento de alunos e amigos-artistas. A troca de informações e experiências era intensa e contínua. Ali, Gisela já se revelou aquarelista de talento. Yolanda muitas vezes incentivava seus alunos a pintarem os mesmos temas sugeridos ou também pintados por ela. Vários dos modelos que posavam no ateliê foram pintados por Yolanda, Gisela e, aparentemente, por outros alunos- artistas presentes – numa experiência compartilhada de grande interesse. Se pudessem ser confrontadas, tais obras apresentariam, quer pela similaridade dos temas, quer pelas diferenças pessoais de traços dos artistas, um laboratório com resultados múltiplos e enriquecedores. Muitas das aquarelas de Gisela pintadas nesse período possuem datas completas (dia-mês-ano), o que parece revelar – segundo informações de alunos e amigos de Yolanda e Gisela na época, como, por exemplo, a pintora e fotógrafa Alice Brill em depoimento que me foi feito há alguns anos – que a obra foi pintada num único dia, anotado no papel. A quantidade e a qualidade dos trabalhos produzidos nessas experiências coletivas impressionam e mostram bem a evolução de Gisela Eichbaum em seu afã de conseguir cores e veladuras cada vez mais diáfanas, objetivo maior da aquarela. Também são deste período as poucas telas pintadas pela artista, que se sentia mais à vontade executando suas obras sobre papel, suporte que foi marca indelével de todo seu percurso como artista. Na década de 1960 e no caminho certeiro da conquista da abstração, Gisela sofreu o impacto da sua rápida passagem pelo Atelier Abstração de São Paulo, importante movimento fundado pelo romeno de formação francesa Samson Flexor. As paisagens urbanas e as figuras alongadas, estáticas e misteriosas pintadas na década anterior começaram, pouco a pouco, a se esfacelar. Os trabalhos da artista iniciaram nova, intensa e definitiva fase, revelando a partir de então uma artista de amplo e requintado colorismo. Aliados ao traço nunca abandonado (que consagraria seu desenho, premiado nos anos 1980), tais trabalhos abriram caminho para a abolição definitiva da figura, objetivo buscado com disciplina e persistência e alcançado pela artista em realizações exemplares. Os anos 1970-1980 consolidaram sua técnica de pintura muito pessoal, sempre no suporte do papel. Com grande liberdade de expressão, Gisela reuniu num mesmo trabalho as várias técnicas utilizadas até então. Nanquim, grafite, aquarela, guache e caneta esferográfica se uniram para a obtenção de um resultado único e surpreendente. Nada era excessivo e tudo se integrava em imagens intensamente trabalhadas e equilibradas. Já nos últimos trabalhos, feitos entre 1994 e 1996, um certo grafismo surgiu em meio aos traços e cores. Era uma escrita aparentemente automática, um texto codificado, que poderia ser interpretado como verdadeira confissão de princípios que regeram sua vida como desenhista e pintora. Parece justo afirmar que são frases de seu testamento artístico, do legado que a artista deixou. Neste livro pretendeu-se abordar o leitmotiv de todo o percurso artístico de Gisela que foi não só a melancolia de uma criatura sensível e atenta, obrigada a deixar seu país natal, mas também a descoberta de um novo mundo, conciliável com tudo o que ela acreditava ser mais importante, e que tomou novo impulso nas cores transfiguradas dos trópicos, misto de refúgio seguro e surpresa constante. De tradicional família de músicos que remonta ao século XVII, Gisela produziu obras abstratas eivadas de profundo conhecimento e sensibilidade musicais, influência presente em seus trabalhos de maneira assertiva e definitiva. Assim, o título deste livro remete intencionalmente ao de outro, idealizado por Gisela e publicado em 1986, numa clara homenagem à outra sua forte paixão, além da pintura: a música. Naquela ocasião, a artista organizou suas Canções sem palavras, compilação de imagens com o mesmo espírito das pequenas peças da obra homônima de Mendelssohn. Esclarecedor é o texto inédito de Alvaro Machado, publicado neste volume, sobre a importância absoluta da música na obra de Eichbaum. Segundo Alberto Teixeira, “uma das notas mais características dessa imagística é a poética da luz, uma luz própria e inconfundível, construída com cromatismos e traçados sutis, em efeitos meridianos e noturnais, mas predominantemente de média luz e crepusculares, em paisagens sonhadas ou lembradas, simbólicas e evocativas de situações e vivências múltiplas, ou em abstrações que são como música de singular harmonia”. Em geral de pequenas dimensões, os trabalhos de Gisela Eichbaum foram a prova das suas vastas dimensões criadoras que consolidaram, dessa forma, um duradouro projeto artístico.
Janeiro de 2013 | Antonio Carlos Suster Abdalla é curador, pesquisador de artes visuais e especialista em museologia desde 1987. Trabalhou em exposições, pesquisas e livros de Aldemir Martins, Alice Brill, Arcângelo Ianelli, Burle Marx, Cássio Vasconcellos, Darel, Eduardo Muylaert, Emanoel Araújo, Fernando Odriozola, Heitor dos Prazeres, Jacques Douchez, Jorge Amado, Juan Esteves, Marcello Grassmann, Maria Bonomi, Mário Gruber, Niobe Xandó, Odetto Guersoni, Odires Milázho, Raquel de Queiroz, Santos Dumont, Tarsila do Amaral, Vânia Toledo e Vera Goulart, entre vários outros.

Antonio Gonçalves Filho

Pinturas líricas e colunas bárbaras
[...] reúne 35 guaches recentes, datados a partir de 1984, marcando o retorno da grande colorista alemã Gisela Eichbaum [...]. O primeiro detalhe que será, inevitavelmente, percebido na individual de Gisela Eichbaum é a utilização de cores ausentes em trabalhos anteriores da artista, como o verde, por exemplo. Aos 66 anos, essa ex-aluna de Yolanda Mohaly, Samson Flexor e Karl Plattner, iniciada nas cores dramáticas do expressionismo, e xibe uma obra madura, plena de referências musicais, como nas telas de Paul Klee (também um grande violinista). Não se trata, porém, de uma homenagem. “Não sei explicar o meu trabalho”, diz Gisela, modestamente. “A música aparece naturalmente [Gisela descende de uma família de músicos célebres (Bruch) desde o século 18, da Alemanha] nestes trabalhos de pequenas dimensões, talvez porque escute muito Bach, Schubert, Schumann e Haendel enquanto estou trabalhando.” [...] Por vezes, as cores são fortes, como num dramático adágio, predominando o cinza. Em outros trabalhos, a artista recorre ao que batizou de “vermelho perdido”, como numa fuga bachiana, mas, desde que abandonou o ateliê do mestre Flexor, por volta de 1947, só em raras ocasiões dá preferência a cores frias, como o azul. Cores da guerra. De qualquer modo, as cores, hoje, 30 anos após a sua primeira individual no MAM de São Paulo, são mais vivas, alegres: “Eu cheguei ao Brasil em 1935, com 15 anos, vinda da experiência terrível da perseguição nazista. No começo desenhava figuras macabras, soldados com olhar perdido, figuras humanas desesperadas. Não gosto de expor esses trabalhos.”
Folha de S.Paulo, São Paulo (SP), 11/3/1986

Enock Sacramento

A pintura musical de Gisela Eichbaum
Há uma relação muito íntima entre música e pintura, principalmente entre a instrumental e a abstrata. Desde Kandinsky esta aproximação tem sido notada com clareza. Com efeito, ambas são ars combinatoria por excelência. Das combinações das notas ou das cores, na riqueza das variações qualitativas e quantitativas possíveis, nas gradações tonais infinitas surgem obras que são verdadeiros estados puros de emoção e sensibilidade [...]. Musicistas e artistas plásticos competentes tendem a combinações segundo um código próprio, partindo de uma maneira de ver e de sentir particulares que os levam a produzir obras diferenciadas da produção de outros artistas, conservando no conjunto uma unidade interna, uma linguagem própria que lhes dá dignidade e nobreza. Gisela Eichbaum é uma pintora musical. Nos dois sentidos, pois, tendo estudado música na juventude, acabou fazendo uma pintura musical na maturidade. Ela entendeu cedo o que é harmonia, melodia, ritmo, contraponto. E os tem aplicado em suas pinturas abstratas atuais com uma sensibilidade e uma sabedoria que só a convivência de anos com materiais e processos permite exercer em plenitude [...].
Galeria Documenta, São Paulo (SP), março de 1986

Flávio de Aquino

Pintura musical
“Os sons, os odores e as cores assemelham-se”, dizia Baudelaire. Este é o caso de Gisela Eichbaum [...]. Sua arte é inteiramente musical. Os tons vagos, as formas que se fundem em um meio fluído, em verdadeiras músicas de câmara requintadas, criam combinações oníricas, sonhos em que formas não identificadas são envolvidas por tênue neblina colorida. Sua arte é suave, um tanto misteriosa e encantadora em sua incapacidade de ser decifrada. Uma boa most ra.
Manchete, Rio de Janeiro (RJ), 15/3/1986

Geraldo Ferraz

Gisela Eichbaum acha-se numa plenitude de seus talentos como pintora, de sua imaginação nas concepções em que versa a sua indiscutível originalidade. As cidades e as naturezas mortas, as estruturas de que se armam os objetos que ela atinge na temática de uma inventiva sempre atenta, sem precipitações e sem clamores, na surda evocação de certas horas crepusculares, de certas incisões em que ranhuras de vidro são trazidas à superfície deste desenho miraculoso, que participa de t odas as delicadezas imponderáveis – desfilam nesta exposição, carregadas de uma poesia e de um mistério que se acham nas raízes da criação. Raro o caso em que teríamos de selecionar nestes trabalhos um desenho ou uma pintura em que não houvesse um mínimo de arte à valoração, à revelação, à comunicação do mundo subjetivo que a informa. É de fato produto dessa riqueza interior, desses estoques de sonho, que Gisela emerge com tantas qualidades e tantos valores. Artista difícil para os que buscam o mecânico à superfície, para os que desdenham de uma tensão subjetiva superando todas as realidades, mas sem dúvida alguma pairando entre o sonho e o absurdo cotidiano, com a intermediária função do cenário que a contemplação sugere. Sentimento de linha, sentimento de cor, qualidades aprofundadas numa pesquisa paciente, eis o exemplo que está na produção de Gisela e que pediríamos à vida que lhe permitisse continuar desenvolvendo.
Retrospectiva Gisela Eichbaum – 40 Anos de Pintura e Desenho, Museu de Arte de São Paulo (Masp), São Paulo (SP) e Brazilian American Cultural Institute, Washington (EUA), 1983

José Neistein

Quando Gisela começou a pintar, o mundo estava em guerra, a humanidade vivia longos dias de angústia. Gisela era parte dessa angústia e passou a registrá-la expressivamente em suas telas. Data de 1944 sua primeira pintura. Seu primeiro período artístico vai dessa data a 1960. E é desse período que estão reunidas nesta mostra 20 telas, que estão sendo vistas em público pela primeira vez. Para os amigos e admiradores de Gisela, acostumados a ver seus desenhos e guaches, abstratos, líricos, de beleza musical, esta mostra será uma surpresa, mas também uma revelação, em vários sentidos. Algumas das cores prediletas de Gisela e suas combinações já estavam embrionariamente contidas naquela fase, como o cinza, o azul, o negro, por exemplo, e o gosto pelas sombras. O privilégio de poder ver agora as telas daquela fase e de compará-las aos desenhos e guaches recentes que as acompanham nesta exposição, está em podermos ver, absorver e comparar o início do processo genético da criação artística de Gisela ao que ela fez de 30 anos para cá, e de constatar que há uma lógica, um fio condutor interno em seus 50 anos de trajetória artística. Mas esta mostra é mais do que isso: é mais do que a constatação de uma congruência no desenvolvimento formal e cromático da artista, pois seu expressionismo figurativo das décadas de 1940 e 1950 já contém e prenuncia o aprofundamento de suas qualidades líricas, que seriam tão intensamente registradas em seu expressionismo abstrato e informal. Os personagens que Gisela pintou naquela época, cheios de espanto no olhar diante do absurdo do que ia em sua volta e do qual eram vítimas inocentes, exprimem medo, pavor, insegurança e angústia, mas não exprimem ódio ou rancor. Há uma solidariedade e uma ternura que os une, desde os retratos individuais até os grupos de famílias, de irmãos, amigos e namorados, e a massa anônima nas ruas. Há também uma esperança no fundo dos olhos de todos aqueles seres humanos, que nos deixa entrever a compaixão com que Gisela os vê e a luz que ela nos deixa vislumbrar no fundo do túnel. É essa luz também que nos permite antecipar, agora, retrospectivamente, toda a humanidade, todo o lirismo que alimenta a obra de Gisela e que nos devolve a crença no homem.
Casa das Artes Galeria, São Paulo (SP), setembro de 1995

José Neistein

[...] em 1970 [...] o que mais fortemente me impressionou foi a nervosidade caligráfica e a arquitetura fantástica, embora abstrata, de seus desenhos em preto e branco, e foi também a delicadeza e o equilíbrio no uso da cor em seus guaches. Hoje, decorridos 12 anos – anos estes em que acompanhei de perto o desenvolvimento da linha abstrato- -expressionista do trabalho de Gisela naquelas duas técnicas –, e no momento em que escrevo estas palavras para o catálogo da mostra dos frutos de 40 anos de trabalho da artista, ocorre-me que só recentemente tive a oportunidade de ver sua produção praticamente global, aquela da qual uma seleção representativa está reunida nesta retrospectiva. Em decorrência dessa oportunidade que me foi dada vivenciar numa tarde de grande intensidade e vibração interior no ateliê da artista, várias observações básicas me vieram à mente. Para começar, a abstração que principia na década de 1960 na produção de Gisela é uma decorrência natural da figuração para-expressionista que ela cultivou nas duas décadas anteriores. Mas é uma decorrência natural que se fez acompanhar também por progressiva libertação interior. As primeiras pinturas de Gisela são de caráter projetivo, e estão carregadas de angústia e fantasias mórbidas. À medida que seu aprendizado artístico vai-se processando, sua personalidade vai- -se aprofundando e seu nível de consciência se torna mais alto. Já no período final de suas figurações, de seus retratos, suas paisagens urbanas e suas naturezas mortas, a cor e a forma se fundem, cada vez mais objetivas e coesas, e cada vez menos amarradas. Uma vez fundidas a forma e a cor, daí para o informalismo expressivo era apenas um passo. Mas um passo difícil, que era preciso ser dado. Gisela deu-o a sua maneira, com timidez e excessiva autocrítica no início – daí a severidade de suas composições no fim da década de 1950 e no começo da de 1960 – com lirismo e liberdade onírica crescentes, depois. Não que a angústia tenha desaparecido de sua obra; apenas, o principal aconteceu: ela deixou de ser puramente psicológica e projetiva, para ser transfigurada em forma e cor esteticamente válidas. Contida em sua substância artística, ela agora surge metamorfoseada e liberta pela própria criação, integrada na globalidade com que seu trabalho se dá. E ele se dá com musicalidade e com pudor, que são as marcas essenciais de uma artista que atinge agora sua plena maturidade e que, portanto, conquistou a legitimidade de vir a público hoje, para mostrar como tudo isso aconteceu no correr de 40 anos, em meio à alegria e à tristeza, à revelação e ao desencanto, ao desânimo e à coragem, aos retrocessos e aos avanços, à crença no trabalho, à crença na vida, para o espanto de todos os fantasmas.
Retrospectiva Gisela Eichbaum – 40 Anos de Pintura e Desenho, Museu de Arte de São Paulo (Masp), São Paulo (SP), e Brazilian American Cultural Institute, Washington (EUA), 1983

Lisetta Levi

Quarenta anos de trabalho ininterrupto, nos quais a artista partiu do realismo para chegar às delicadas transparências das suas paisagens. Observando o desenvolvimento destes trabalhos, assistimos a um processo de libertação: da matéria ao espírito. A temática inicial foi a figura humana, que Gisela transcendeu para passar a representar as suas visionárias casas, pequenas formas que se delineiam no espaço, sustentadas por um desenho leve que une as formas. A poesia destes trabalhos é devida ao fato de que cada obra nasce da vida interior da artista – como uma escrita misteriosa. As formas cubistas das casas de dissolvem no espaço, um espaço cósmico que não pertence a nenhum lugar determinado. Quando as obras são verticais, as formas se entrelaçam e sobem – numa ascensão gótica –, quando são horizontais, se estendem – unindo-se – num “andante sostenuto”. São melodias cantadas entre a terra e o céu. Ótima desenhista e colorista, Gisela pode até permitir-se usar a cor rosa – nunca abusando dela. Rosas e cinzas, às vezes pretos flutuam no espaço – não na terra e não no céu –, no espaço no qual a artista mesma se encontra. Refinado é o senso de ritmo que Gisela possui: até os seus círculos vermelhos, que aparecem de repente no maio de um “andante” são contrapontos musicais. Todas estas paisagens formam um conjunto harmonioso no qual cada trabalho se destaca pela sua criatividade, formando uma série de “variações sobre o mesmo tema”. A delicada obra de Gisela me toca profundamente, enquanto me entroso com as suas formas flutuantes, seu sentimento de mistério torna-se meu. Nesta obra aconteceu o que Paul Klee disse da arte: “O invisível tornou-se visível.”
Retrospectiva Gisela Eichbaum – 40 Anos de Pintura e Desenho, Museu de Arte de São Paulo (Masp), São Paulo (SP), Brazilian American Cultural Institute, Washington (EUA), 1983, e Galeria Aquarela, Campinas (SP), 1985

Marcos Rizzolli

Mutações da consciência visual
“Tentei exprimir as terríveis paixões da humanidade por meio do vermelho e do verde.” Com essas considerações inicia-se, com Van Gogh, o pensamento expressionista. Não o movimento da arte. O pensamento. Em Paris, Van Gogh começou a experimentar uma pintura de pinceladas flamejantes que pareciam brotar de uma paixão intensa. Quando visualizamos suas pinturas pode-se, facilmente, aperceber o seu estado de espírito agitado e revoltado. Da Noruega, Edvard Munch também criou uma arte perturbante como um pesadelo. Juntos, foram os precursores de um tipo de arte que se desenvolveu principalmente na pintura alemã e pretende – por meio de uma expressão plástica violenta – transmitir valores morais e sociais além da forma/representação. “O sofrimento é eterno.” Estabelece-se um vínculo: a figuração. No Brasil, dois expoentes expressionistas: Anita Malfatti e Lasar Segall; Segall foi um mestre e, consequentemente, obteve seguidores. Alimentaram-se em sua arte e teoria dois artistas fundamentais para nossa arte: Lívio Abramo e Yolanda Mohalyi. Lívio foi mestre na gravura. Mohalyi aplica-se na pintura. Gisela Eichbaum foi aluna de Mohalyi e, com ela, adquiriu todo um talento expressivo expressionista. De início figurativo. A figuração nas obras de Gisela é baseada nos princípios da expressão. Nada de teorias visuais rebuscadas. A figura humana se serve de simplificações anatômicas, lógicas e racionais, para transmitir a essência: emoção. Para que é a perspectiva? As situações desprovidas de ilusão ótica tradicional oferecem ênfase ao assunto: paisagens, naturezas objetais, o homem. A cor é silenciosa. Densa e neutra. Seus contornos revelam as imagens: começa a ensaiar um grafismo refinado que vai, a partir daí, se envolver em toda produção artística de Gisela. Começa a preferência pela paisagem. Depois das realizações Dadá e surrealistas surge o expressionismo abstrato. O desenvolvimento, agora, é norte-americano. É o pós-guerra. É o automatismo visual: geométrico ou informal. Razão e emoção (velhas divagações e/ou dúvidas). A emoção, abstrata e expressionista, vai atingir a plenitude nos novos trabalhos de Gisela Eichbaum. Sem os parâmetros figurativos sua arte ganha uma desenvoltura que estabelece uma relação original: uma vivência visual adequada à forma, à cor e ao grafismo. A forma nem sempre é percebida, delineada. A cor é constante, ora neutra ora provocadora de efeitos/recursos visuais de infinita plasticidade. O grafismo interfere no espaço, cria opções compositivas. O guache é o material básico: cobertura ou diluição. Os lavados de aguada: a aquarela. O aveludado do giz pastel. As linhas são sensíveis e nobres, mesmo quando delineadas com a esferográfica. Cores/formas se movimentam no espaço. Sempre num fundo sem horizonte. Sempre num espaço sem lógica representativa. Sempre expressão [...].
Correio Popular, Campinas (SP), 10/4/1985

Mário Schenberg

[...] belos desenhos em branco e preto dos últimos anos, que, paulatinamente, foram adquirindo o caráter de paisagens fantásticas. A tendência para o figurativo foi se acentuando de modo largamente involuntário ou, talvez, mesmo inconsciente. No momento em que os seus desenhos fantásticos em branco e preto atingiram um nível altamente satisfatório, Gisela sentiu a necessidade de retornar à cor. Na 8ª Bienal já foram expostas algumas de suas primeiras composições da nova fase em nanquim colorido, datando de 1963 e 1964. Desde então Gisela realizou progressos notáveis em seus trabalhos em cor, que aos poucos foram perdendo o caráter de desenhos coloridos para se transformarem em autênticas pinturas. Nessa fase os seus quadros apresentam-se bem menos figurativos que na fase colorida anterior a 1960. Gisela Eichbaum é uma artista de sensibilidade excepcional, que possui domínio notável de uma técnica requintada [...]. Seu colorido, delicado e sumamente discreto, tende à criação dum mundo de suave musicalidade silenciosa. Os últimos trabalhos coloridos de Gisela nos comunicam uma forma de musicalidade com estruturação arrítmica de durações. Há neles uma temporalidade pluridimensional, sem direcionalidade linear: um flutuar emocional de mancha a mancha num tatear intuitivo. Ela cria um sentimento de liberdade e paz interior, com uma nota onírica peculiar. A visão contemplativa de Gisela parece apanhar um tempo nascente, ainda sem direcionalidade definida nem dimensionalidade precisa.
Galeria São Luís, São Paulo (SP), 1966

Pietro Maria Bardi

No plano programático do Masp que, desde sua fundação, divulga as mais diversas tendências, sendo seu princípio o máximo de informação, eis uma exposição que nos dá conta de um período em que no Brasil hospedaram-se artistas que, vindos da Alemanha, afirmaram aqui o expressionismo. Além do grande Lasar Segall, eis nesta exposição uma pintora que se insere naquele amplo fenômeno, consequência da crise derivada da inquietação que seguira a 1ª Grande Guerra, provocadora dos encontros, desencontros e polêmicas dos numerosos modos que participaram da reação ao impressionismo. É quando se notou, ao longo da nossa geração, a afirmação da inquietação e perplexidade maturada nos anos de 1920; determinou correntes superadoras da consideração externa da realidade, à procura de significados, mensagens, animações. A participação de Gisela, com sua expressão espontânea, destaque, se não se revolta contra as “nobres invenções” dos clássicos obsequiosamente seguidos pelos acadêmicos, é um dos inúmeros momentos determinadores da poética pictórica do Novecentos, que se dissolveu nas mais livres, antitradicionais manifestações.
Retrospectiva Gisela Eichbaum – 40 Anos de Pintura e Desenho, Museu de Arte de São Paulo (Masp), São Paulo (SP), e Brazilian American Cultural Institute, Washington (EUA), 1983